... e deixaram-na entregue aos lavradores da primeira aldeia que toparam. A aldeia demorava às abas do Monte Córdova, serra que se empina e ondeia com as fragosissimas encostas até à vila de Santo Tirso.
In A Bruxa de Monte Córdova, pp 178-Camilo Castelo Branco

Medicina Popular em Monte Córdova

Ensalmos, a arte de sarar maleitas em Monte Córdova

Quando a fé no sobrenatural e no misticismo " anda " à solta, torna-se difícil traçar a fronteira entre a religião e a superstição, porque quem acode nas aflições é o curandeiro ou mulher de virtude, com o seu extenso receituário caseiro, à mistura com gesticulações incompreensíveis e rezas em louvor a Deus e à Virgem Maria.
Em termos práticos estamos perante medicina popular, que é feita de rezas, de práticas e ritos. O curandeiro ou mulher de virtude dispõe de variadíssimos meios, desde a faca para " cortar o ar ", o raminho de plantas para fazer o chá ou benzer o padecente, o " poder" das figas, o fogo, o carvão, o azeite, a água, o sal, barbas de milho, folhas de aipo, de silva, de sabugueiro, o unto de porco, etc, etc.
Nesta encenação, o padecente aceita que o curandeiro ou mulher de virtude recebeu do Senhor o dom de sarar maleitas... porque quase todas as práticas da medicina popular são acompanhadas com rezas de cariz Cristão e que invariavelmente começam e terminam com o sinal da cruz ao serem agitados os raminhos de ervas bentas.
É um nunca mais acabar de soluções para sarar ou talhar o farfalho,  a zipela (erisípela), o zipelão, a rana, o fogo lobo, a dada, o pé aberto, a espinhela caída, o bicho, o bichoco; esconjuros para todos os tormentos, maneiras de cortar o ar, maus olhados, etc, etc.

O ensalmo, na sabedoria popular, é um esconjuro a ares e males à sombra da religião, Por isso, a doutrina cristã condena as benzeduras ou ensalmos, assistindo-lhe o direito de o fazer dada a ausência de fronteira entre religião e crendice: logo, surge a quebra de fé e de temor a Deus.
A medicina científica, dita oficial, também combate essa prática com o argumento de que, o receituário de unguentos e mezinhas pode  ser prejudicial à saúde das pessoas que procuram o alívio para os seus males...
Qualquer prática de medicina não convencional é classificada de prática ilegal de medicina, mesmo que, a " receita" seja água de arroz para a soltura, ou folhas de sabugueiro untadas em azeite, para talhar o zipelão.

Não rotulando tudo de superstição ou atraso, importa mostrar onde está a tradição, os valores culturais que tal ciência popular tão antiga nos legou até hoje. É que, a medicina popular é, também, a memória de um povo e como património tradicional é importante preservar à memória futura.(a)

Não visam outra coisa os ensalmos que se seguem, recolhidos em Monte Córdova ( grande parte deles e com pequeninas diferenças também os encontramos pela mesma época, entre 1988 e 1989, em Paradela – uma das aldeias mais antigas de Vilarinho, situada no outro extremo nascente do Concelho de Santo Tirso -, na botica de “ ti Lucinda”, uma pequena casa, modesta, regularmente visitada por gente de toda a parte e onde  atendia os padecimentos alheios, apesar da sua avançada idade, pois contava para  cima de setenta anos. Somos testemunho que não pedia nada a ninguém e só aceitava o que lhe quisessem dar).

                                                       ENSALMOS PARA OS MALES
Zipela (1)
Deita-se num prato um pouco de azeite. Talha-se com nove folhas de oliveira,
riscando cruzes e molhando as folhas no azeite.
A talhadeira faz o sinal da cruz e diz;
-Zipela maldita sai-te daqui.
Assim como o azeite é bento,
                        Alumeia(2) o Santíssimo Sacramento.
(deita-se no braço, perna ou onde for)
r
Deixa-me isto são por fóra,
mais por dentro.
Termina fazendo o sinal da cruz.

                                                     Farfalho(3)
Arranja-se nove pontas de trapo de Iã vermelho.  Leva-se a criança para junto da pia dos 
porcos, onde são molhadas as pontas de trapo. Deita-se um pouco de mel no pano
e chega-se à boca.
Começa e acaba com o sinal da cruz.
-Farfola sai-te daqui.
 Assim como porco e porca
                          comeu aqui.
Repete-se nove vezes e, no fim, deitam-se os trapos ao lume para queimar a doença.
Termina fazendo o sinal da cruz.


Talhar o Bicho(4)
A criança ou pessoa senta-se num banco ou cadeira. A ensalmista faz o sinal da cruz,
acende um fósforo e diz:
                      - Eu te talho,
bicho, bichão,
sapo, sapão,
aranha, aranhão,
largato(5) largatão,
saramela, saramelão,
ou bicho de qualquer nação,
Que seja comparante a este carvão.
Em louvor de S. Selivreste(6)
se confiar preste.
Nosso Senhor Jesus Cristo
Seja o verdadeiro mestre.
Repete nove vezes, utilizando em cada vez um fósforo a arder e riscando cruzes na parte doente. Termina com o sinal da cruz.

Fogo Lobo(7)

Neste, o ensalmista pega num fósforo e enquanto está a arder, diz;
-Iria três filhas tinha.
Uma ia ao monte,
outra à fonte,
a outra o que faria?
Ardia no fogo.
P'Io poder de Deus e da Virgem Maria,
em louvor de S. Selivreste,
se confiar preste.
Nosso Senhor Jesus Cristo
seja o verdadeiro mestre.
Enquanto vai recitando, risca cruzes na região afectada. Quando termina, faz o
acto de cuspir.
Rana(8)
Usa-se  nove pontas ou folhas de silva;
-Santa Cecília teve um menino na serra,
nasceu-lhe uma rana debaixo da língua.
                          Nossa Senhora lhe disse, que talhasse com água de sal
e gomos de silva.
Que lhe rezasse um padre Nosso e Avé Maria.
Talha-se repetindo nove vezes e termina com o sinal da cruz.
                                          Talhar a   Dada (9)
- A padecente deverá munir-se previamente, levando um par de calças de homem, já vestidas.(10)
A ensalmista pega nas calças, dobra-as em cruz e diz:        
                  má mulher te fez a cama.
                  Bô te(11)  deu pousada,
                 
Sub grade(12) sub lama(13)
sai-te dada desta mama.
Repete nove vezes, fazendo o sinal da cruz, antes e depois.
Talhar o Bichoco(14)
Mistura-se um pouco de sal com água corredia de fonte, numa malga, onde se junta
Uns pézinhos de funcho e unto de porco macho.
                          -Eu te talho,
bicho, bichoco,
com funcho e unto e sal,
e água de fonte pedral.
Repete nove vezes e termina com o sinal da cruz.
Deita-se tudo no lume para ao fim de três dias ficar sarado.
Zipelão(15)

Talha-se com nove pontas ou folhas de " sempre verde ”.(16) Deita-se num prato
um pouco de azeite onde se molham as folhas, fazendo pequenas cruzes sobre a
parte atacada.
-Sempre verde abençoado,
foste perdido, foste achado,
na fonte foste consagrado.
Talha-me esta zipela,
este ruborado.
Deita-se tudo no lume para ao fim de três dias ficar sarado.

                                                Zimbrada(17)                                    
Este e um dos raros ensalmos que pode ser feito pelo próprio, depois de
regressado a casa. Com um fósforo aceso diz:
-Um me deu,
dois me viro
e três me tiro.
Em nome do Pai, do Filho e Espírito Santo
Amém.

NOTAS
 (1)-Erisípela. Vermelhidão com inchação dolorosa da pele.
 (2)-ilumina
 (3)-Inflamação na língua
 (4)-Erupção na pele
 (5)-Lagarto
 (6)-S. Silvestre
 (7)-Vermelhidão provocada  por cobras ou outros repteis
 (8)-0 mesmo que aftas
 (9)-Abcesso no peito das mulheres, no período da amamentação
(10)-Usadas antes
(11)-Bom homem
(12)-Deverá ser: sob; o mesmo que; debaixo
(13)-Para curarem as dadas das tetas das vacas, os lavradores usavam lama
                                                                                                       dos rios.
(14)-Erupção provocada na pele por qualquer réptil.              
(15)-Manchas vermelhas
(16)-Sabugueiro
(17)-Dores de cabeça, acompanhadas de tremuras.
(a) - Meritório trabalho tem sido feito desde há longos anos pelo Pe. António Fontes, em Vilar de Perdizes, Montalegre, com os "Congressos de Medicina Popular", também com a nossa participação  nos anos 80.     
- Bibliografia auxiliar utilizada:
- “Flora Portuguesa”, 2ª edição, de Gonçalo Sampaio, dirigida por Américo Pires de Lima, 1947
- “Medicina Popular Minhota”, Sep. Rev. Lusitana, vol XXIX, por A. Lima Carneiro e F.C. Pires de Lima, 1932
- “Plantas Medicinais de Santo Tirso”, Bol. Cult. de Santo Tirso, vol. I-nº3, por A. Lima Carneiro, 1952
                      - “Vilarinho”, monografia, por António Assunção, 1989